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“O corpo que dança é um saber”, nossa visita guiada com Leandro Vieira pelo MAM Rio

12/02/2021 - Por ArtRio

Era o dia da inauguração da enorme bandeira verde e rosa que ocupa até o 7 de março o Salão Monumental do MAM Rio. Mas ela, Brasileira até no título, não demorou nem mesmo alguns minutos para ser declarada uma obra morta por seu criador, o artista, carnavalesco e curador Leandro Vieira: “Morta no momento que saiu da avenida”, inclusive.

Estamos falando da Bandeira Brasileira, criada para o inesquecível desfile da Estação Primeira da Mangueira de 2019, do qual saiu, além de morta, campeã. Mas ali, dentro daquele salão, ela, enorme com seus dizeres “ÍNDIOS, NEGROS E POBRES” sobre nossas cabeças, indicava uma outra batalha:

“Militar vem ganhando um sentido pejorativo. Eu sempre tento recuperar a noção de militar como defender uma ideia. Nesse sentido, eu tenho sido uma espécie de militante – um defensor – do olhar que a sociedade brasileira tem justamente dificuldade de lançar para a produção artística e para os saberes das escolas de samba.”

Ao lado e à frente, a Bandeira verde e rosa tem a companhia dos Parangolés de Hélio Oiticica, artista título da exposição em meio à qual ela está erguida. “É muito curioso ver em um museu hoje, em uma visita com todo esse contorno institucional e de saberes institucionalizados das artes, os Parangolés do Hélio Oiticica.” Se aproximando de uma das peças, que devido à pandemia não pode ser vestida ou tocada, Leandro continua: “Enquanto artista com formação acadêmica, tive o Hélio como material de pesquisa universitária e pessoal, mas todo mundo sabe que sua obra não é acessível com tanta facilidade. Ter a possibilidade de se deparar com uma ampla mostra, com tantos Parangolés reunidos – eu nunca tinha visto tantos juntos – me chamou especialmente atenção para uma questão: o quanto que o hélio mergulhou no universo das escolas de samba de uma maneira muito profunda mas que quase sempre foi ignorada pelas instituições de arte.”

Bandeira Brasileira em meio aos Parangolés de Hélio Oiticia no São Monumental do MAM Rio. Foto: Fábio Souza.

Os Parangolés, que carregam um certo quê de indefinição no próprio nome, aparecem aos visitantes como uma espécie de capa, peças de roupas, coloridas, expostas por todo o salão. “Vamos encontrar por toda a historiografia uma série de relatos sobre os Parangolés e da experiência do Parangolé com a dança. Todo mundo sabe que a dança foi fundamental para a experiência dos Parangolés – esse inclusive é o título dessa exposição: A dança na minha experiência.” Apesar de parados durante a nossa visita, essa não é sua natureza. Como Leandro e Shion Lucas, membro do educativo do museu que nos orientou na visita, se adiantam em lembrar rapidamente: o Parangolé em si existe em movimento, na dança. “Quase tudo aqui dança. O Parangolé, ou tudo que o Hélio produz visualmente, dança.”

Mas “muitos desses materiais,” caminha alguns passos por entre alguns, “vamos encontrar quase que exclusivamente mobilizados no universo das escolas de samba. Isso é uma entretela, isso é esteira de palha, o título desse é Chochoba – ex-porta bandeira da Mangueira -, esse é verde e rosa. E ainda assim nós vamos ler muito pouco sobre isso, sobre a relação específica do Parangolé com o samba e os saberes das escolas de samba.”

Uma ocasião específica é lembrada em geral quando o assunto surge. E foi ela que, simbólica, nos veio em mente durante a visita. Em 1965, no mesmo MAM que estávamos visitando, repercutiu uma polêmica em torno do lançamento dos Parangolés.

“A relação do hélio com a escola vem de 1963, o clássico de lembrarmos é 1965 por causa da mostra Opinião 65 e os componentes [da escola] terem sido barrados. Mas em 1963 o Hélio chega na Mangueira como ajudante/auxiliar do Amilcar de Castro, que curiosamente é um escultor neoconcreto. Eu me perguntava o que esses caras foram fazer no barracão da Mangueira. É curioso que eles não foram lá para serem carnavalescos. Hélio chegou em 1963 para o carnaval de 1964 e ele e o Amilcar foram trabalhar em um enredo chamado ‘A história de um preto velho’. E parece não ter absolutamente nada a ver, o que um artista neoconcreto estaria fazendo ali para trabalhar esse enredo?

Mas ai a gente começa a observar que justamente o meio institucional de arte não sabe nem o que o Hélio foi fazer em 1963 na Mangueira. Isso por quê? Porque não há o mesmo interesse em saber o que é produzido dentro de um universo das escolas de samba. Não há interesse em saber o que o Amilcar fez lá. O Hélio fez pinturas decorativas para alegorias da mangueira, onde está esse trabalho? Ninguém sabe. O do Amilcar foi leiloado – inclusive existe uma matéria no Jornal do Brasil contando – o dinheiro arrecadado com o leilão foi dado para a Mangueira, que, segundo o presidente da época, com o valor do leilão da obra do Amilcar ele fez o carnaval do ano seguinte. Porque estou contando isso? Porque o Hélio chega em 1963 para o carnaval de 1964 e em 1965 ele já está aqui [no MAM] querendo expor os seus Parangolés com a turma que ele conheceu no Morro da Mangueira.

Acho bacana que em 1965 ele tenta trazer essa turma para dentro do MAM com naturalidade. Talvez ele achasse que, com a mesma naturalidade que ele foi recebido na Comunidade Mangueirense, a Comunidade seria recebida no museu. E nesse sentido o museu tem muito a aprender com as instituições populares. Ele [Hélio] tenta trazer essas pessoas para dentro do museu, em uma exposição muito importante, a Opinião 65, e elas são barradas.”

Leandro Vieria. Foto de Oscar Liberal

Leandro foi convidado pela nova diretoria artística do museu a organizar, ao lado da mostra Hélio Oiticica: a dança na minha experiência, uma programação paralela de “não-carnaval” durante as atividades do MAM de Verão. Considerando todo o histórico da relação entre o artista e o museu, esses contornos – que ganham cor verde e rosa em debates e oficinas ao longo de todo o início do ano – diferenciam essa exibição da anterior da mesma mostra, realizada no MASP, São Paulo, ano passado.

“Quando fui chamado para pensar uma ocupação do museu durante a exposição do Hélio, a ideia foi exatamente pensar em como a Mangueira poderia entrar e ocupar esse espaço. E a primeira coisa que quis impedir era esse olhar para a escola de samba, esse olhar com o qual se olha algo folclórico. É uma visão comum que muita gente tem. É a noção de que a escola de samba é apenas aquilo: que ela organiza uma festa que acontece em fevereiro na forma de um desfile, que tem mulheres bonitas seminuas e, ao lado disso, uma noção de que essa festa é uma desvirtuação política do país. Quando eu comecei a pensar isso aqui eu quis exatamente ir contra essas preconcepções e apresentar a ideia de um “saber”, os saberes da escola. O mestre-sala e a porta-bandeira não vão vir aqui para uma demonstração e sim para uma troca de saberes. A porta-bandeira, por exemplo, guarda saberes ancestrais. Sambar é uma atividade intelectual. Nós, de um modo geral, somos pautados por essa lógica eurocêntrica na qual atribuímos quase que exclusivamente o conhecimento e a intelectualidade à escrita. Inclusive, nessa lógica, é a escrita que pauta a memória. Mas, é importante lembrar isso também, a intectualidade negra muitas vezes passa por outros saberes. O corpo que dança é um saber.”

Hélio se deixou influenciar por esses saberes ancestrais criando uma obra na qual evita uma hierarquia entre eles e sua formação anterior. O Parangolé existe e é vivo enquanto movimento, dançado. Assim como a bandeira, a respeito da qual Leandro lembra que foi uma iniciativa do museu trazê-la como um marco dessa ocupação. Aqui ela fica como registro. Uma forma de tentar se eternizar para além da escrita. Uma forma de fazer o convite para que a vejamos onde se apresenta viva, nessa entidade quase centenária que é o desfile.


Leando Vieira é artista plástico formado pela Escola de Belas Artes da UFRJ e atua na cena carnavalesca desde 2015. À frente dos projetos artísticos da Estação Primeira de Mangueira, conquistou dois campeonatos. Nos últimos anos, tem desenvolvido propostas conceituais que ultrapassam os contornos dos desfiles para a avenida. Em 2017, sua produção artística debruçada sobre a religiosidade popular foi documentada pelo IPHAN e levada ao Paço Imperial do Rio de Janeiro em exposição individual. Em seu mais recente desfile – Mangueira, 2020 – enfrentou a resistência conservadora ao apresentar a biografia de Cristo com nuances políticas e sociais contemporâneas.

Leandro também é o curador do programa Saberes da Mangueira, a programação das atividades está disponível aqui.


As exposições Hélio Oiticica: A dança na minha experiência (com curadoria de Adriano Pedrosa e Tomás Toledo)e Bandeira Brasileira seguem até o dia 7 de março.
O MAM Rio fica na Av. Infante Dom Henrique, 85, Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro. Visitas às quintas e sextas, das 13h às 18h, e aos sábados e domingos das 10h às 18h.


Primeira imagem: arquivo pessoal da equipe ArtRio | Texto por Júlia Paes Leme

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