Uma carta-panorama-manifesto de Lyz Parayzo para o Dia da Visibilidade Trans


Há exatamente um ano conversamos com a artista Lyz Parayzo. Assim como hoje, era a ocasião do Dia da Visibilidade Trans e essa era a pauta do dia. Os questionamentos que nos fez, assertivos, deram título ao texto na ocasião, destacando a pergunta “Por que não existe o dia do homem branco cis?” e a afirmação e certeza que ela, enquanto escultora, não tem sua pesquisa restrita a um único aspecto de sua identidade.
Essa semana retomamos nossa conversa e lhe enviamos algumas perguntas cheias da curiosidade de quem acompanha sua vida e produção nas redes sociais e, claro, do desejo de atualizar a nossa troca e saber o que mudou ao longo desse ano que transcorreu, seja na sua pesquisa, no mundo e no espaço ocupado pelas pessoas transexuais. Às três perguntas – seguem copiadas a seguir -, recebemos como resposta um panorama-manifesto e o pedido de publicá-lo integralmente. Irrecusável, como verão, segue na íntegra o e-mail recebido.
Perguntas:
– Você concluiu o mestrado? Como está a carreira em Paris, sua pesquisa e produção?
– Para você, houve alguma mudança na visibilidade ou na forma como são vistas pessoas trans, em especial nas artes?
– O principal questionamento que podemos levantar segue sendo “Por que não existe o dia do homem branco cis?”?
Respostas:
Teoricamente, o meu mestrado terminará em setembro de 2022 quando terei de fazer uma exposição individual na École Beaux Arts de Paris como exame final para a validação da minha pós-graduação. Entretanto, eu estenderei minha formação até o final de 2023 partindo da intenção de dar continuidade às experimentações que tenho feito neste momento para o meu projeto de diploma que, sob orientação dos meus chefes de ateliê, a escultora Anne Rochette e o artista plástico e poeta Julien Creuzet, tem sido friccionado por demandas intelectuais e plásticas para um tipo de produção mais consciente, sustentável e por que não descartável ?
Desde “Cuir Cuir”, minha última individual (projeto instalativo + performance com a querida artista Ellen Braga) que aconteceu no espaço NICC em Bruxelas na Bélgica com curadoria da genial Laila Melchior, tenho me dedicado a uma produção mais textual por conta da minha vida acadêmica. Nos últimos meses de 2021 me revezei entre a escrita da minha dissertação – se trata de uma análise epistolar de cartas ficcionais escritas por mim à artista e terapeuta Lygia Clark – e de um texto, também em formato de cartas, sobre a sala especial de 1963 desta mesma artista que aconteceu na VII Bienal de São Paulo. Este último, feito a convite do curador Paulo Miyada, já foi escrito e será publicado este ano como um dos capítulos do catálogo comemorativo de 70 anos da Fundação Bienal de São Paulo. Neste período eu também produzi algumas esculturas e duas delas podem ser vistas agora em São Paulo tanto no Instituto Moreira Salles como no Instituto Tomie Ohtake.
Acredito que desde de 2020, ou antes, mulheres trans, homens trans, travestis e pessoas não-binárias têm tido sim mais visibilidade nos espaços institucionais da arte. Graças ao debate público sobre gênero, raça e classe que tem norteado os projetos curatoriais nas artes visuais no Brasil, as exposições, os prêmios e residências artísticas têm sido pressionados (mesmo que o júri de seleção seja sempre composto por pessoas cis) a nomear corpas T, que com a publicização atual da internet e das mídias sociais têm ganhado projeção no cenário artístico nacional. Entretanto, quando as teorias decolonias que sustentam tais pautas acontecem dentro de uma lógica neoliberal, na minha opinião, a pergunta mais honesta deveria ser: A visibilidade basta e está acontecendo de fato uma real distribuição de capital simbólico e financeiro para comunidade T?
Acho que hoje, um ano depois da nossa primeira entrevista, eu gostaria de não dar atenção ou protagonismo ao homem branco e as pessoas cis brancas que em geral devem fazer parte de 90% (ou mais) dos acervos dos museus do Brasil. Mas pensar como a população trans pode monetizar sob a sede que o sistema de arte tem tido com relação aos corpos dissidentes gênero e racializados.
Não acredito mais que a inclusão de corpas trans em exposições coletivas institucionais e museológicas (a convite de curadors cis) sejam suficientes para dizimar esse apagamento estrutural do corpo trans e travesti no mercado de trabalho cultural. Que projeto de sociedade sonhamos e o quão distante ele está dos catálogos que temos acesso? Hoje apenas eu, Lyz Parayzo, a artista Élle de Bernardini e a artista Vulcanica Pokaropa fazem parte de acervos museais no Brasil. 3 pessoas trans para quantos nomes nas coleções nacionais? Hoje, no corpo curatorial dos museus mais importantes do nosso país, temos pessoas negras e indígenas. Em que ano teremos a primeira pessoa trans e travesti? Qual museu no Brasil terá coragem de fazer a primeira exposição de um artiste trans e/ou travesti ?
Minha resposta e solução é:
– Projeto de cotas para aquisição de trabalhos de pessoas trans e travestis em todos os acervos museológicos do Brasil.
– Projeto de cotas também para que pessoas trans e travestis façam parte do corpo curatorial de todos os museus do Brasil.
Muito obrigada pelo convite, Júlia!
Me avisa quando você publicar?
Beijos,
Lyz Parayzo.
A entrevista do ano passado pode ser lida aqui: “Por que não existe o dia do homem branco cis?”, uma conversa com a escultora Lyz Parayzo
Na imagem: foto do ateliê da artista em Paris, enviada por ela.