A ArtRio convidou alguns pesquisadores e personalidades que estão vivendo ativamente o mundo da arte – inclusive nesse confuso 2020 – para pensarem com a gente, nos ajudarem a entender, e mostrarem suas visões e ideias sobre alguns artistas, obras ou a própria atualidade.
Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Língua, canção de Caetano Veloso
A poética de Lenora de Barros é conhecida por colocar em marcha uma íntima relação entre imagem e palavra escrita. Esta foi justamente uma das questões que serviram de motor para a produção das fotografias que compõem Poema. Em depoimento, a artista declara que a ideia para o trabalho surgiu da intenção de fazer um poema sobre a criação de um poema mas, diante do papel em branco, ela viu emergir uma espécie de angústia. A solução viria durante a noite, não como poema escrito, mas já em sua forma visual.
Poema é composto por uma sequência de seis fotografias: o registro de uma espécie de performance em que a língua da artista interage com uma máquina de escrever. Aqui a figura da língua ocupa seu duplo significado: tanto como fala e como órgão encarregado por articular a fala. É como se, subitamente, o ofício da escrita não mais dependesse dos dedos. A língua de Lenora roça nas próprias letras que o órgão geralmente é incumbido de pronunciar, suprimindo a distância entre as dimensões gráfica e sonora da palavra. Uma vez convertido em instrumento de escrita, a língua parece anunciar uma promessa: será que digitar um poema diretamente com a língua poderia amenizar a sensação de extravio, tão recorrente no percurso que a imaginação atravessa até chegar nos dedos?
Esta utopia é logo dissolvida nas fotos que dão sequência ao trabalho. Vemos a língua da artista sendo violentamente devorada pelo mecanismo metálico da máquina, o mesmo que golpeia e imprime as letras no papel. O ofício de escrever é aqui remetido a um sofrimento áspero, esta espécie de combate com as palavras que jamais poderíamos vencer: embora tentemos nos livrar das suas ardilosas redes de significado, somos invariavelmente rendidos. Assim, a sequência de fotografias frustra qualquer possibilidade de abrandar nosso desamparo no trato com a linguagem, aqui irredutível a uma matéria dócil e plenamente domesticável. Deste modo, encena o jogo de mestria e escravidão que estabelecemos com ela, como nas palavras de Roland Barthes.
Ao aglomerar o duplo significado da palavra língua, Poema carrega a promessa de interrogar os limites de uma certa concepção imaterial da linguagem que ainda partilhamos. Assim como Barthes, Lenora de Barros parece atravessada pela vontade de fazer a linguagem se agitar em toda sua experiência de matéria palpável, que já não mais se destina a tagarelar sobre um mundo do qual se encontra apartada, mas se configura como uma matriz capaz de forjar mundos. Esta mesma promessa fez com que Vladimir Maiakovski pudesse aproximar a arte do martelo e distanciá-la do espelho.
Mas talvez esta dupla acepção da palavra também aponte para um outro tempo, em que os horizontes do pensamento não colocavam uma diferença clara entre o órgão da fala e a própria fala. Em Poema a língua já não é apenas a matéria orgânica de um corpo e tampouco uma substância imaterial proferida desde um corpo, mas as duas acepções da palavra incidem uma sobre a outra. Até que ponto a língua pode ser categoricamente separada do corpo?
A psicanálise já nos ensinou que a linguagem não cessa de implicar a matéria desse corpo que fala. O nó na garganta é uma destas sensações que não se restringem a uma figura metafórica: ela inscreve no próprio corpo a impossibilidade de, em um dado momento, falar sobre algo. A língua de Lenora de Barros, imobilizada pelo mecanismo da máquina de escrever, materializa algo desta impotência, diante da qual a arte não cessa de nos colocar.
Poema
Lenora de Barros
ANITA SCHWARTZ GALERIA DE ARTE
Técnica: Impressão Jato de tinta sobre papel algodão
Ano: 1979
Tamanho: 139,7 × 29,8cm