A ArtRio convidou alguns pesquisadores e personalidades que estão vivendo ativamente o mundo da arte – inclusive nesse confuso 2020 – para pensarem com a gente, nos ajudarem a entender, e mostrarem suas visões e ideias sobre alguns artistas, obras ou a própria atualidade.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Mensagem, de Fernando Pessoa
Para conceber a série Limite Oblíquo, Vicente de Mello parte de uma de suas várias coleções de objetos, composta por sedimentos que sobreviveram a ressacas, encontrados na praia de Itacoatiara, Niterói. São galhos, madeiras, sementes e folhas, que o artista arranja e fotografa sobre uma mesa de luz. Vemos imagens quase monocromáticas, em preto e branco, onde há pouquíssimas gradações de luz e sombra. Somos instantaneamente remetidos à técnica do fotograma. Trata-se de um procedimento fotográfico realizado em laboratório, em que determinados objetos são posicionados entre o papel fotossensível e uma fonte de luz. Filtrando ou bloqueando a incidência da luz, eles imprimem diretamente suas silhuetas no papel fotográfico após a revelação.
Esta prática experimental, que vem habitando os procedimentos poéticos de Vicente de Mello desde sua série Monolux, foi desenvolvida no final do século XIX. Nesta época, o fotógrafo pioneiro William Fox Talbot elaborou uma técnica ancestral do fotograma, que ele batizaria com seu próprio nome: a talbotipia. Àquela época, os processos fotográficos ainda eram muito lentos para a reter animais vivos. Mais de um século e meio antes de Vicente de Mello, o artista inglês ficou fascinado com a possibilidade de capturar imagens vegetais no papel fotossensível, uma forma de estancar seu processo natural de decomposição. Assim, os procedimentos de Talbot já apontavam para as relações entre fotografia e morte, que seriam destacadas por Roland Barthes.
Limite Oblíquo parece também maquinar sobre o caráter mortuário da fotografia, agora não mais almejando reter a vida em seu ápice, mas reelaborando um conjunto de refugos já mortos, dando-lhes uma espécie de vida póstuma. Esta remontagem recusa tanto os usos formalista e geométrico do fotograma, tão caros às vanguardas do começo do século XX, quanto seu emprego como decalque do mundo visível. Os arranjos de Vicente de Mello se inserem nestes interstícios: trata-se de um movimento em que fotos se fazem abstratas apenas para retornarem como uma figuração imaginária.
Uma vez despidas de seus volumes pela luz ofuscante e transformados em silhuetas, os objetos de sua coleção parecem transformados em signos tipológicos, pinceladas, riscos e pontos, como traços de uma cartografia náufraga. Aqui já não se trata de formar uma composição visualmente equilibrada, mas de mostrar esses objetos como acúmulos aleatórios em desarranjo. Se o artista recolhe elementos que foram dissipados pelas águas do oceano, ele não tem qualquer intuito de reorganizá-los, seja em tipologias ou disposições formalistas. Trata-se de ordená-los em dispersão, como quando boiavam sobre a água do mar, ou talvez de dispô-los do modo como a deriva flutuante lhes depositou aleatoriamente na areia branca da praia.
Tal como o catador de restos, personagem concebida por Walter Benjamin a partir de Charles Baudelaire, o artista recolhe em suas imagens uma constelação de fragmentos desimportantes. Já esculpidos pelas inclemências da água salgada e pelo movimento do oceano, eles finalmente aportaram à praia, como restos de algum naufrágio. Deste modo, as imagens de Limite Oblíquo condensam, no espaço retangular da fotografia, amálgamas de distintos tempos e espaços que agiram sobre a matéria orgânica destes refugos.
Série Limite Oblíquo
Vicente de Mello
LURIXS
Técnica: Impressão digital
Ano: 2020
Tamanho: 50 × 60cm
Pedro Caetano Eboli é graduado em Desenho Industrial na UFRJ, com formação teórico-prática na EAV Parque Lage. É mestre em Artes e Design pela PUC-Rio, onde atualmente cursa o doutorado. Suas investigações interrogam algumas das relações entre arte, política e movimentos sociais no Brasil contemporâneo.