José Bernnô
[José Norberto de Mattos] 1946-2009, São Paulo | SP Se algum desavisado motorista, com o carro amassado, entrar na oficina de funilaria e pintura de José Bernnô, no Bairro do Limão, talvez se espante. Ao contrário daqueles espaços que, não raro, têm em suas paredes calendário com mulheres seminuas ou pôster com imagem kitsch, a oficina/ateliê de Bernnô é forrada de pinturas que exigem do observador uma atitude diversa daquela que se tem diante das imagens que nos bombardeiam diariamente. Bernnô tem um olhar formado, ao longo de muitos anos, em contato com a cor. Em sua trajetória, há uma experiência em pintura conquistada com um prolongado exercício do ofício. Ele sabe encontrar, como poucos, o tom exato para se fazer aquele reparo em parte da lataria sem que a cor destoe do todo. Chegar à cor é como encontrar uma nota que soe perfeita dentro de um acorde. Embora familiarizado com a cozinha da pintura, e tudo o que ela envolve de artesanal, Bernnô jamais poderia ser taxado de naïf, primitivo ou ingênuo. Além do aprendizado autodidata na oficina, ele é graduado em artes plásticas e estudou com grandes pintores e teóricos da arte. Portanto, conhecimento de história da arte não lhe falta e um olhar atento poderia estabelecer diversos vínculos com o que há de melhor na tradição da pintura. Talvez a pintura de Volpi do início da década de 1960 em diante – pela sabedoria na construção das telas e pela articulação entre cor e formas geométricas nada rígidas – seja uma aproximação pertinente. E nunca é demais lembrar que o pintor do Cambuci, bairro tipicamente operário, demorou alguns anos para ser descoberto pela aristocracia paulista. Em todo caso, a aproximação entre Volpi e Bernnô vai além do fato de ambos viverem ou terem vivido relativamente distantes dos bairros em que se concentram a maior parte das galerias, ateliês e da produção artística, embora ambos saibam olhar o entorno e aproveitar as suas particularidades. De um modo ou de outro, a pintura de Bernnô não necessitaria ser associada a alguma outra já consagrada para ser reconhecida. Seu valor está em si mesma, internamente, em sua composição, nas relações que estabelece com o suporte, em seus elementos pictóricos. E isso não impede que as conexões que ela estabeleça com o mundo que habita sejam significativas. Se, por um lado, os procedimentos do artista têm algo de artesanal, pelo uso da tinta a óleo e da encáustica sobre tela, seu trabalho também requer a pintura automotiva e a tinta industrial sobre chapa de metal. Apesar dos materiais industriais, o modo como ele lida com as suas pinturas é individualizado. Mesmo quando há claramente repetição (por exemplo, na série de doze pequenas pinturas em que a composição permanece rigorosamente a mesma enquanto as cores são permutáveis), cada trabalho não perde a singularidade. É como se cada um fosse uma jóia única, e a caixa em que o artista as coloca, por mais rústica que seja, ressalta esse aspecto. Grande parte das composições de Bernnô é estruturada sobre fortes contrastes entre cores matéricas e da presença de elementos pretos. As manchas de cor, por mais geométricas que sejam, têm algo de orgânico e se encaixam umas nas outras como se tendessem a sempre encontrar um equilíbrio harmônico. Às vezes, este equilíbrio surge – mesmo que as formas verticais pareçam ter mais força – devido à incorporação das laterais do suporte à pintura, o que reforça o aspecto objetual dos trabalhos e os afasta da superfície plana. Por mais que algumas de suas pinturas apresentem vestígios de uma grade mondrianesca e uniforme que se deixa entrever pelos sulcos na matéria da tinta, a geometria de suas formas é de uma expressividade e sensibilidade extremas. Do encontro entre massas, costumam surgir linhas de cor num plano mais afastado. A partir dessas linhas, é possível perceber que sua pintura é construída por camadas e que cada camada tem uma cor, uma memória e seu próprio tempo. Muito dessa percepção se dá nas falhas das superfícies que recusam uma camada homogênea. É justamente quando o que estaria no fundo vem à tona, como numa raspagem da pintura, na retirada do excesso, que se revela a complexidade do trabalho e toda a sua espessura. A pintura de Bernnô nos pede tempo para ser contemplada, um tempo que não é aquele de quem dirige estressado e velozmente seu automóvel, mas o tempo de quem se dedica a olhar atentamente e sem pressa para as texturas e pinturas desses mesmos automóveis, assim como para a arte e o mundo em geral. Para José Bernnô, o tempo ligado às práticas artesanais não é oposto e inconciliável com o tempo dos materiais industriais, assim como a formação acadêmica não pode prescindir de uma experiência franca e verdadeira com a matéria da pintura. Seu trabalho é prova disso. Cauê Alves