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Incorporação do olhar, por Bárbara Bergamaschi

18/10/2020 - Por ArtRio

A ArtRio convidou alguns pesquisadores e personalidades que estão vivendo ativamente o mundo da arte – inclusive nesse confuso 2020 – para pensarem com a gente, nos ajudarem a entender, e mostrarem suas visões e ideias sobre alguns artistas, obras ou a própria atualidade.


A história da arte nos últimos cem anos, desde que escapa aos especialistas, é a história do que é fotografável

Andre Malraux.

Diante de uma imagem duas aproximações possíveis. A primeira: render-se ao mergulho, cair para dentro, explorar sua profundidade, habitar um novo território do sensível. Projeção imaginativa, pura abstração. A segunda: salto para fora, enredar-se na sua tessitura, pousar na pele da tela, observando em detalhe sua fina carnadura, ver com sentidos-outros, olfato, tato, audição, ouvir a mudez da cor – que tanto diz – para além da visão. Agora, pura presença. Como dirá Didi-Huberman, em frente a um quadro estamos sempre em um duplo-movimento simultâneo, entre a transparência e a opacidade, limiar que constitui a experiência estética.

Em um mundo cuja tendência já apontava para uma crescente desmaterialização da experiência, o que nos reserva a arte enquanto matéria em tempos de pandemia? No isolamento da quarentena, quando todos os caminhos levam às outras telas (de nossos computadores) como mobilizar os corpos? Que tipos de encontros o embate entre fatura física e virtualidade nos permite? Com essas perguntas em mente caminhei pela exposição online da art.rio, em busca de encontros com esses objetos-limiares, meio presentes e meio ausentes. Desse percurso nasceram esses três pequenos ensaios.

(I)

O primeiro trabalho que me convocou foi a obra Eventos (1977) de Ana Vitória Mussi exposto na Galeria Lume. Nele observamos uma série de negativos fotográficos em 35 mm dispostos, alinhados e prensados entre duas placas de vidro de 70 × 90cm, como uma espécie de monolito ou tela-totêmica. O vidro – material privilegiado da arquitetura modernista – que a princípio convocaria a transparência, nesta obra, ao contrário, é justamente o que impede a visibilidade devido as ranhuras impressas na sua superfície. Mesmo ao aproximar com a lupa no computador, em uma reprodução de alta resolução, é impossível divisar o que a película guarda em si como um cofre.

Na contramão de sua essência ontológica – ou seja, a de revelar algo – os negativos reforçam a sua origem etimológica: não se permitem positivar. São a encarnação da negatividade. Dão ver o que neles surgem apenas como forma-enigma. Recusam a reduzir-se à condição canônica que coloca a fotografia como serva do despotismo do “real” – herdeira da fotografia direta de Stieglitz e do instante decisivo de Cartier-Bresson. Mais do revelar a obra de Mussi parece reivindicar para si a condição latente e lacunar de toda imagem, que se furta a explicação redutora comportando em si camadas de textos subterrâneos, inadvertidos até mesmo para os próprios artistas.

Muitos dos trabalhos de Mussi (como Por um Fio, também do mesmo ano) são feitos a partir do arquivo de negativos guardados pela artista durante os 10 anos em que atuou como fotógrafa de colunas de revista sociais, tais como a Caras. Essa informação expande o título Eventos e acresce a obra de novos sentidos. Ao brincar de per-verter (ou seja, des-encaminhar) a função original do paparazzi, a artista cria um jogo conceitual. O fotógrafo registraria um evento único no qual, supostamente, a vida íntima e os segredos são revelados, tornando as celebridades “humanas demasiado humanas”, “gente como a gente” e “de carne e osso”. No trabalho de Mussi, entretanto, a única encarnação é a do próprio material que compõe a obra: a rolo de 35 mm. Em uma espécie manifesto-mudo anti-musa, um elogio da sombra, ode ao “lado B” obscuro do glamour, Eventos aponta para aquilo que há de convulsivo por trás de toda beleza convencional e padronizada. Mostra o que não se dá a ver em toda imagem e nela se encerra.

(II)

A segunda obra que convocou nosso corpo foi Corpos extranhos (2011) de Rosangela Rennó. A artista mineira, da mesma geração de Mussi, é também uma fotógrafa que trabalha sem fotografar. Rennó vê na fotografia não uma representação, mas um locus onde delimita o terreno de seu trabalho. A foto surge como parte de um processo de reflexão, mais como ato do que como mimesis. Em uma sociedade cada vez mais mediada, suas escolhas vão no contra-fluxo da máquina voraz de produção de imagens de nosso tempo. O que lhe interessa é o refugo, o resto, o que iria para a lata de lixo do consumo vertiginoso: aparelhos obsoletos encontrados em antiquários, álbuns de fotografia descartados, personagens esquecidas e apagadas da história oficial – obra feita de sobras.

Em Corpos Extranhos, exposto na galeria Vermelho, vemos um antigo mapa mundi com a reprodução do continente africano. Ao lado dessa reprodução, como um enxerto soturno, Rennó acopla uma prótese dentária que lembra os objetos fetichizados dos rituais de matriz africana como o voodoo ou a santeria. Esse corpo estranho – termo médico utilizado para se referir a um invasor que de maneira não-natural se insere em um organismo o adoecendo – é entranhado ao terreno visual de maneira agressiva. Ele paira ameaçadoramente sobre o continente como se prestes a atracar em seus portos e em seguida feri-lo ou abocanhá-lo. A peça nos remete imediatamente à violência da escravidão, criando uma zona de mal estar. Gera um desconforto e traz um amargor na boca. Rennó subverte a racionalidade do mapa (tão útil ao colonizador) para inserir ali uma ferida que adoece a objetividade científica cartográfica. Na chave benjaminiana, produz um “monumento” a barbárie que subjaz todo monumento que é erguido aos vencedores.

(III)

Ainda na chave contra-monumental o trabalho de Tunga, Afinidades Eletivas – Miniatura Monumental – Joia (2002), exposto na Galeria Millan, como o título já indica, nos permite traçar zonas de vizinhanças afetivas entre as três obras. A estranha conjunção de ovos de prata cravejados de dentes, unidos por correntes como um carrossel de brinquedo, cria um abismo de indiscernibilidade, onde o estranho-familiar impera. Conceitos a princípio díspares, como o orgânico e o inorgânico, o universo infantil e o adulto, se amalgamam em um único objeto. Nele o inerte parece reivindicar sua possibilidade de se animar, ou seja, de ser dotado de alma. Como se num passe de mágica ou mesmo num feitiço (palavra de onde se origina o termo “fetiche”) o objeto com seu misterioso mecanismo de ovo gerasse vida própria. O surrealismo foi também pródigo em fez nascer dos objetos “inúteis” (os objets-trouvés) uma estranha atmosfera. Um “ar” surrealista emana da obra, sendo o movimento de Breton e Bataille uma influencia que nos parece latente em toda a obra de Tunga, mesmo que de maneira não auto-evidente. Lembremos da definição de homem presente no dicionário surrealista de Bataille publicado na revista Documents:

Homem: Um eminente químico inglês, o Dr. Charles Henry Maye, empenhou-se em estabelecer de maneira exata do que o homem é feito e qual seu valor químico. Eis o resultado de suas doutas pesquisas: a gordura do corpo de um homem de constituição normal bastaria para fabricar 7 sabonetes. Encontra-se no organismo ferro suficiente para fabricar um prego de grossura média e açúcar para adoçar uma xícara de café. O fósforo daria para 2.200 palitos de fósforo. O magnésio forneceria o necessário para tirar uma fotografia. (…)” (BATAILLE, p. 96, 2018)

Só nos resta concluir (se é que algo se encerra numa obra) como diria Bataille:

Eis um homem!

__________

Finalmente, diante dessas três imagens, pressentimos estranhos corpos pulsantes, vibrantes e presentes. Mesmo através deste solitário ecrã elas foram capazes de nos fazer incorporar estranhos devires.


Bárbara Bergamaschi Novaes é doutoranda pelo PPGCOM-ECO/UFRJ e pelo PPGLCC-LETRAS/ PUC-RIO. É mestre em Artes da Cena (PPGAC/ECO-UFRJ) na linha de pesquisa Poéticas da Cena: Teoria e Crítica. Formada em Comunicação Social (2014) pela UFRJ. Em 2012 participou de intercâmbio acadêmico na Universidade de Paris VIII – Vincennes St.Denis, onde estudou Cinema. Tem certificado em Fundamentação em Artes (2010) pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). É uma das editoras da Revista Beira (https://medium.com/revista-beira).

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